sábado, 9 de março de 2013

CHANCELLER 100



De cócoras no meio da sala, Baía mal olhava para a televisão, curubijando a mistura do meu prato raso de arroz e feijão. Naqueles tempos de dificuldade, o bife de carne pareceu-lhe uma iguaria tentadora. No meu fastio crônico de menino desnutrido, eu apenas remexia desinteressado o prato com a colher, sem desgrudar os olhos do desenho animado.    
Baía acabara de mostrar-me, antes do almoço, a nova aquisição da sua invejável coleção de carteiras de cigarro. Era uma Chanceller 100, dobrada com esmero em forma de dinheiro, miúda e rara, estampada com faixas azuis em diferentes tons, ocupando um canto destacado da sua maleta de madeira. Fiquei boquiaberto.  
As carteiras de algum valor da minha pobre coleção não passavam de três: uma Mustang, uma Arizona e uma Minister. As demais eram carteiras muito comuns nas ruas da cidade. Talvez toda a minha coleção não chegasse ao valor da Chanceller.
Baía era menino sereno, precoce para a idade, organizado. Não nos acompanhava nas andanças atrás de carteira pelas ruas. Tinha fornecedores, alguns donos de bar, alguns fumantes endinheirados, alguns caminhoneiros de passagem pela cidade.
Estranhei o interesse dele pelo bife. Imaginava que na casa dele passava-se melhor. Ofereci um pedaço. Ele balançou desconfiado a cabeça afirmativamente. Perguntei se ele queria negociar o bife todo. Ele voltou os olhos para a televisão, com alguma indiferença. Disse que trocaria o bife pela Chanceller 100 dele. Baía, com os olhos ainda na televisão, fez um rápido sinal de positivo com o polegar e se retirou. 
Arrependi-me da proposta ofensiva. Devia ter ferido os brios do amigo. Interpretei o sinal positivo do polegar como uma ironia. Estava certo de que ele não negociaria a sua valiosa Chanceller 100, recém-adquirida, por nada no mundo.
Antes que eu parasse de pensar no episódio e começasse a almoçar a comida já fria, porém, eis que me ressurge o Baía, com a Chanceller 100 em mãos, entregando-a a mim. Não me contive. Passei-lhe o bife com as mãos trêmulas e corri para o quarto para apreciar incrédulo a raridade que acabara de adquirir.       
Pouco depois, vendo o prato de arroz e feijão no meio da sala, D. Leda me chamou:  
– Bora menino, comer o resto! Ó menino réi doido por carne! 

Um comentário:

Orestes disse...

rsrsrsrs, Eu também colecionei carteiras de cigarro. Lembro do capri, malboro, camel, acácia, entre outras. Valia como dinheiro. Muito boa, Poeta!!